Compilação das informações de Boletins de Ocorrência abrangendo violências letais e não letais contra crianças e adolescentes. Com isso, pretende-se apresentar um panorama inicial sobre as dinâmicas das diferentes formas de violência que atingem as crianças e adolescentes de parte dos Estados do país.
O levantamento foi realizado com base em dados de 12 Unidades da Federação1 selecionadas a partir da diferença regional e da disponibilidade de informações, tendo a finalidade de promover um olhar inédito para o contexto da violência contra crianças, por meio da compilação de dados de Boletins de Ocorrência. Os crimes aqui considerados são: maus tratos (art. 136 do Código Penal e art. 232 do Estatuto da Criança e do Adolescente), lesão corporal dolosa em contexto de violência doméstica (art. 129, §9º do código penal), exploração sexual (art. 218-B do código penal e artigo 244-A do ECA), estupro (inclui estupro de vulnerável) e morte violentas intencionais (homicídios dolosos, feminicídios, latrocínio, lesão corporal seguida de morte e mortes decorrentes de intervenção policial). A escolha dos crimes se deu a partir de conversas com profissionais da segurança pública, além do conhecimento agregado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública a respeito da disponibilidade de informações das instituições. Os dados considerados são aqueles cujos crimes tiveram vítimas de 0 a 17 anos entre 2019 e o primeiro semestre de 2021.
Para o período mencionado acima, foram identificadas 129.844 ocorrências dos crimes selecionados contra crianças e adolescentes de 0 a 17 anos nas 12 Unidades da Federação. Os dados estão segmentados por faixa etária, utilizando a divisão que segue parcialmente aquela determinada pelo DATASUS, que por sua vez, segue a determinação da Organização Mundial da Saúde (OMS). Sendo assim, optou-se por utilizar os três primeiros recortes (0-4 anos, 5-9 anos e 10-14 anos) estabelecidos pela Organização e, buscando, respeitar o marco legal que define o grupo de crianças e adolescentes como aqueles com até 18 anos incompletos, alterou-se apenas a última faixa para 15-17 anos ao invés de 15 a 19 anos.
Total de crimes com vítimas de 0 a 17 anos, por tipo de crime (2019-2021)
TOTAL = 129.844
LESÃO CORPORAL (VD) - 23.494
MAUS TRATOS - 28.098
ESTUPRO - 73.442
EXPLORAÇÃO SEXUAL = 1.093
MVI = 3.717
Perfil das vítimas por crime de estupro:
85% Sexo Feminino
13.925 vítimas 1º sem. de 2021 (6,9% em relação ao 1º sem. de 2020);
73.442 registros entre jan. 2019 e jun. 2021 (56,6% do total de registros identificados);
5 a 9 anos ---------- 26%
10 a 14 anos ------ 47%
Negra --------------- 51,6%
Branca -------------- 48%
Perfil das vítimas por crime de exploração sexual:
86% Sexo Feminino
210 vítimas 1º sem. de 2021 (14,8% em relação ao 1º sem. de 2020);
1.093 registros entre jan. 2019 e jun. 2021 (0,8% do total de registros identificados);
10 a 14 anos ---------- 48%
15 a 17 anos ---------- 44%
Negra ------------------- 56,3%
Branca ------------------ 42,7%
PRINCIPAIS ACHADOS SOBRE O PERFIL DAS VÍTIMAS
Dos 129.844 registros compilados nas 12 Unidades da Federação com vítimas de 0 a 17 anos, 56,6% são de estupro, 21,6% de maus- -tratos, 18,1% de lesão corporal dolosa em contexto de violência doméstica, 2,9% de mortes violentas intencionais e 0,8% de exploração sexual.
O crime com maior número de vítimas de 0 a 17 anos é o estupro com 73.442 casos identificados. A faixa etária mais atingida por esse tipo de crime é a de 10 a 14 anos. Nesse caso, existe uma significativa desigualdade de gênero, já que 85% das vítimas são do sexo feminino. A desigualdade de raça/cor não é significativa, mas a maior parte das vítimas é negra (51,6% dentre o total de registros com a raça disponível).
Maus-tratos é o segundo tipo de crime que mais acomete crianças e adolescentes de 0 a 17 anos, com 28.098 casos identificados. 90% das vítimas têm até 14 anos, sendo que a maior parte tem entre 5 e 9 anos (35%). Não há diferença significativa entre o sexo das vítimas se considerado o total de registros de maus-tratos. São 51% de vítimas do sexo masculino contra 49% do sexo feminino. Há diferença de gênero, a depender da faixa etária analisada. Meninos são a maioria das vítimas até os 12 anos, quando as meninas passam a ser a maioria. 59% das vítimas de maus-tratos são brancas e 41% negras do total de registros com a raça disponível.
Foram identificados 23.494 casos de lesão corporal dolosa em contexto de violência doméstica. O grupo mais atingido por esses atos são meninas (77%) entre 15 e 17 anos (51,7%). Não há significativa desigualdade de raça entre as vítimas, mas há uma maioria de vítimas brancas (51,9% dentre o total de registros com a raça disponível).
O levantamento identificou 3.717 casos de mortes violentas intencionais. O grupo etário com maior número de vítimas é o de 15 a 17 anos, significando 82% do total de casos levantados deste crime. A maior parte das vítimas de MVI são do sexo masculino (86%) Quanto maior a faixa etária, maior a desigualdade de gênero na distribuição das vítimas. Do total de vítimas de MVI com registros disponíveis de raça/cor, 78% são negras. A diferença racial também se acentua de acordo com o aumento da faixa etária da vítima. O crime de exploração sexual é o tipo que possui menos registros, um total de 1.093 casos identificados. Esses registros apontam que a maior parte das vítimas estão nas faixas etárias de 10 a 14 (44%) e 15 a 17 anos (48%), sendo a maioria do sexo feminino (86%) e negras (56,3% dentre o total de registros com a raça disponível).
Os crimes de estupro, lesão corporal dolosa em contexto de violência doméstica, maus-tratos e exploração sexual tiveram maior número de registros (dentre o período analisado) no primeiro semestre de 2019. No primeiro semestre de 2020 todos esses crimes apresentaram queda significativa no número de registros. No primeiro semestre de 2021 os números voltam a aumentar, porém sem alcançar os patamares observados no primeiro semestre de 2019. O primeiro semestre de 2020 foi o período com medidas mais drásticas de isolamento social. No entanto, no primeiro semestre de 2021 houve a segunda onda da pandemia de coronavírus e as medidas de isolamento voltaram a ser rigorosas, afetando a vida da população. Por isso, a observação dessa evolução em 2022 será importante para compreender como a pandemia afetou essas estatísticas. A mortes violentas intencionais são o único tipo de crime do levantamento que teve comportamento diferente dos demais. O semestre com o maior número de registros foi o primeiro semestre de 2020. Ou seja, houve um aumento no número de mortes entre o primeiro semestre de 2019 e o primeiro semestre de 2020, seguido de uma queda no primeiro semestre de 2021. Como as mortes violentas intencionais são crimes menos sensíveis à subnotificação, torna-se um indicador importante de que, possivelmente, os anos de pandemia não foram períodos menos violentos, mas sim uma época em que os registros criminais estiveram mais suscetíveis à subnotificação.
A falta de um sistema unificado de dados da segurança pública dificulta a uniformização dos dados e a comparabilidade dos mesmos, portanto é fundamental a existência de um órgão responsável pela coordenação dos trabalhos de coleta, uniformização e publicização dos dados. Os registros apresentam significativa variação de qualidade no preenchimento a depender da Unidade da Federação. Para que seja realizada uma análise precisa dos fenômenos é fundamental que ocorra a melhoria da qualidade do preenchimento dos diferentes campos dos Boletins de Ocorrências, especialmente o campo idade da vítima que deve contar com a informação da idade desagregada. O processo de determinação do enquadramento no código penal tem, como um importante determinante, o registro no Boletim de Ocorrência. Apesar de o fluxo de transformação do “fato real” em “fato jurídico” passar por diversas etapas, a determinação desse enquadramento pode variar de acordo com o entendimento das autoridades policiais que registram a ocorrência dos casos. Portanto, é fundamental a existência de Delegacias Especializadas de Proteção à Criança e ao Adolescente e profissionais com experiência nos tipos de violência que mais acometem esse público. Os crimes não-letais contra crianças e adolescentes estão sujeitos a altas taxas de subnotificação, uma vez que é necessário o engajamento de um adulto para que os casos cheguem às autoridades, especialmente nos casos em que as consequências físicas da violência não se agravam. Portanto, as redes de atendimento às vítimas de violência e os serviços púbicos de segurança pública, assistência social e saúde devem ter profissionais preparados e estratégias ativas de identificação e encaminhamento de vítimas.
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