O abuso sexual contra crianças pode ser considerado um fator de risco para o desenvolvimento infantil, devido às severas seqüelas cognitivas, emocionais e comportamentais relacionadas à sua ocorrência, podendo seu impacto envolver efeitos a curto e longo prazos e estender-se até a idade adulta.
O abuso sexual na infância tem sido relacionado a severas conseqüências para o desenvolvimento infantil, incluindo prejuízos cognitivos, emocionais, comportamentais e sociais (Briere & Elliot, 2003; Paolucci, Genuis & Violato, 2001; Tyler, 2002). Neste sentido, crianças vítimas de abuso sexual podem apresentar uma variedade de transtornos psicopatológicos, tais como transtorno de estresse póstraumático (TEPT), dissociação, depressão, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), transtornos alimentares, transtornos psicossomáticos, comportamento delinqüente e abuso de substâncias (Cicchetti & Toth, 2005; Collin-Vézina & Hébert, 2005; Nurcombe, 2000). Estudos indicam que o TEPT é o quadro psicopatológico mais associado ao abuso sexual contra crianças e adolescentes (Ruggiero, McLeer & Dixon, 2000; Runyon & Kenny, 2002). De modo geral, o TEPT, por definição, envolve a exposição a um evento estressor traumático, ao qual a vítima reage com intenso conteúdo emocional, relacionado a dor, pavor, medo e terror (Post et al., 1998). Um evento é considerado traumático (ou simplesmente trauma) quando se trata de “uma situação experimentada, testemunhada ou confrontada, na qual houve ameaça à vida ou à integridade física de si próprio ou de pessoas a ele afetivamente ligadas” (Câmara Filho & Sougey, 2001, p. 222). Por sua vez, Garbarino, Kostelny e Dubrow (1991) definem trauma como um prejuízo, um estado psíquico ou comportamental desorientado, provocado por estresse mental ou emocional ou dano físico, relacionado a eventos que podem provocar medo agudo ou crônico. Por apresentar tais características, o abuso sexual infantil pode ser descrito como um evento traumático ou simplesmente trauma e, desta forma, estar associado ao desenvolvimento do TEPT.
Apesar de o TEPT ser uma resposta emocional comum após um evento traumático e ser caracterizado como um transtorno de ansiedade pelo Manual de Diagnóstico e Estatístico dos Distúrbios Mentais (APA, 2002), dentro de uma perspectiva cognitiva este é definido como um transtorno de memória (McNally, 1998). Assim, o modelo conceitual do TEPT engloba tanto falhas no processamento da memória traumática, em decorrência da generalização dos estímulos presentes no evento traumático, quanto uma avaliação persistente de ameaça (Alexander et al., 2005; Ehlers & Clark, 2000). Adicionalmente, prejuízos neuropsicológicos em funções executivas, aprendizagem verbal, memória e atenção têm sido associados ao TEPT (Stein, Kennedy & Twamley, 2002; Vasterling et al., 2002; Yehuda, Golier, Halligan & Harvey, 2004). Embora a maioria dos estudos sobre os prejuízos cognitivos associados ao TEPT tenha privilegiado a população adulta e se observe uma lacuna na literatura revisada quanto a crianças vítimas de maus-tratos, aponta-se que a exposição a eventos traumáticos na infância, como, por exemplo, ao abuso sexual, pode interferir no processo de maturação e organização cerebral, devido à hiperativação dos sistemas neurais de respostas ao estresse (Bremner, 1999; Glaser, 2000; Perry, 1997). Tendo como referência estas considerações iniciais, este estudo teórico enfoca as relações entre abuso sexual infantil, TEPT e disfunção cognitiva a partir de uma perspectiva cognitiva e da traumatologia do desenvolvimento (De Bellis, 2005). Inicialmente, serão analisadas as características do abuso sexual contra crianças, suas conseqüências e o desenvolvimento do TEPT. Em seguida serão enfocadas as pesquisas teóricas e empíricas referentes aos prejuízos neurobiológicos e neuropsicológicos relacionados ao TEPT. Por fim, discutem-se os resultados das pesquisas que apontam seqüelas do abuso sexual ao neurodesenvolvimento infantil.
ABUSO SEXUAL INFANTIL E TRANSTORNO DE ESTRESSE PÓS-TRAUMÁTICO (TEPT)
O abuso sexual constitui uma das categorias de maus-tratos contra crianças e adolescentes, as quais incluem ainda o abuso físico, o abuso psicológico, o abandono e a negligência. Compreende todo ato ou jogo sexual, relação hetero- ou homossexual, que pode variar desde intercurso sexual com ou sem penetração (vaginal, anal e oral), voyeurismo, exibicionismo até exploração sexual, como a prostituição e a pornografia (Marques, 1994). Ele pode ser definido como uma forma de violência que envolve poder, coação e/ou sedução (Araújo, 2002). Tais características são observadas através da presença de um agressor, que está em estágio de desenvolvimento psicossocial mais adiantado que a criança ou adolescente e utiliza seu poder para obter a gratificação de seus desejos sexuais (Amazarray & Koller, 1998). Destarte, entre a criança vítima e o adulto perpetrador observa-se uma relação interpessoal hierárquica de poder assimétrica e a falta de uma relação de reciprocidade (De Antoni & Koller, 2002).
No caso de incesto, tipo mais freqüente de abuso sexual infantil, em sua maioria (80%), o pai biológico, padrasto, irmão, tios e avôs são descritos como os principais abusadores (Araújo, 2002). Nestes casos, instaura-se uma confusão entre papéis e funções, pois o incesto envolve cenas de sedução, carinho e violência com uma pessoa afetivamente próxima à criança, envolvendo assim a quebra de confiança com as figuras parentais e/ou de cuidado, que, a princípio, deveriam promover segurança, conforto e bem-estar psicológico (De Antoni & Koller, 2002). Para Furniss (1993), o abuso sexual intrafamiliar pode ainda ser compreendido como uma “Síndrome Conectora de Segredo e Adição”. A síndrome de segredo ocorre através de ameaças, promessas de recompensas e garantia de silêncio introduzidas pelo abusador, bem como pela negação da família em “escutar” as tentativas da criança em comunicar o abuso. A síndrome de adição, por sua vez, envolve a crescente intensidade das diferentes formas de abuso sexual, em geral, num primeiro momento, mais leves, como carícias no corpo da criança, até, num segundo momento, o abuso sexual com intercurso completo. Portanto, o abuso sexual envolve atividades que objetivam a gratificação das demandas e desejos sexuais do abusador, de modo a incluir o elemento intencional e repetitivo (Furniss, 1993).
O impacto do abuso sexual na infância sobre o desenvolvimento pode ser mediado por inúmeros fatores relacionados às características individuais da criança, da família e da comunidade, bem como ao contexto do abuso e ao contexto da revelação, os quais podem interferir nas estratégias de coping utilizadas pela criança (Nurcombe, 2000). Da mesma forma, o estudo de Ruggiero et al. (2000) apontou a idade do início do abuso sexual, a freqüência e a duração do abuso, a presença de penetração e a primeira pessoa para quem a criança revelou o abuso como variáveis mediadoras do impacto do abuso sexual na infância. As seqüelas do abuso sexual infantil podem ser diversas e severas. Incluem conseqüências físicas, como trauma físico, doenças sexualmente transmissíveis, abortos e gravidez indesejada na adolescência. Conseqüências emocionais, como medo, depressão, ansiedade, sentimento de culpa e TEPT têm sido comumente citadas na literatura (Paolucci et al., 2001; Tyler, 2002). Citam-se ainda conseqüências sexuais, como comportamento sexual inapropriado, e alterações comportamentais, como isolamento, dificuldade de confiar no outro e estabelecer relações interpessoais (Amazarray & Koller, 1998). Adicionalmente, um estudo de metaanálise dos efeitos do abuso sexual infantil revelou que as crianças abusadas sexualmente têm um risco aumentado em 20% para o desenvolvimento de TEPT, de 21% para depressão e suicídio, de 14% para comportamento sexual promíscuo, de 8% para a manutenção do ciclo de violência e de 10% para déficits no rendimento escolar (Paolucci et al., 2001).
Ademais, estudos apontaram a prevalência de 30% e 40%, respectivamente, de sintomas de dissociação e TEPT (Collin-Vézina & Hébert, 2005), em meninas vítimas de abuso sexual. Alta prevalência de ansiedade, depressão, TEPT e do transtorno de personalidade borderline foi encontrada em mulheres que sofreram abuso sexual na infância (GrassiOliveira, 2005; MacMillan et al., 2001). Este dado revela que as seqüelas desse ato podem persistir ao longo da adolescência e da vida adulta. Ressalta-se, não obastante, que, embora 50% dos indivíduos na população geral experienciem algum evento estressor significativo durante a vida, apenas uma minoria destes (em torno de 5% a 8%) desenvolverá o quadro de TEPT (Breslau & Kessler, 2001; APA, 2002). Em contrapartida, a prevalência de TEPT em crianças vítimas de abuso sexual pode variar entre 20 e 70% dos casos (Nurcombe, 2000). A presença do diagnóstico de TEPT foi de 36,3% entre as crianças abusadas sexualmente (Ruggiero et al., 2000) e, em outro estudo, observou-se que estas crianças apresentaram significativamente mais sintomas de TEPT, quando comparadas a crianças que sofreram abuso físico (Runyon & Kenny, 2002). Desta forma, o TEPT é apontado como o transtorno psicológico mais associado ao abuso sexual infantil.
O diagnóstico de TEPT é realizado após a pessoa vivenciar, testemunhar ou ter sido confrontada com um ou mais eventos traumáticos avassaladores e reagir com intenso medo, pavor ou comportamento de esquiva. Os critérios de TEPT são agrupados em três categorias de sintomas, a saber: 1) reexperiência intrusiva do trauma; 2) esquiva persistente de estímulos associados com o trauma e entorpecimento da reatividade geral; e, 3) sintomas persistentes de excitabilidade fisiológica (APA, 2002). O critério de reexperiência traumática envolve lembranças intrusivas e recorrentes, que podem ocorrer sob a forma de sonhos aflitivos e pesadelos, sendo carregadas de forte componente afetivo e associadas a angústia e sofrimento intenso do paciente (Câmara Filho & Sougey, 2001). A manifestação de flasbacks é caracterizada pela sensação da vítima de estar revivendo o evento traumático no momento atual de sua vida. O comportamento de esquiva, em geral, interfere nas atividades cotidianas da pessoa, devido à alta energia emocional empenhada na aquisição de lembranças e sentimentos relacionados ao trauma. Percebe-se, ainda, o entorpecimento emocional, o qual pode ser caracterizado pela dificuldade do paciente com TEPT em descrever, expressar e ganhar afeto. Sintomas de taquicardia, respiração ofegante, formigamentos, sudorese, tonturas, dores abdominais e outros acompanham as lembranças traumáticas e a evitação cognitiva e emocional do trauma. A hipervigilância, que é caracterizada como “estar em guarda e atento” aos estímulos externos, coloca a vítima num estado persistente de ameaça, em que o ambiente sempre é considerado como um lugar inseguro e imprevisível. Por último, resposta de sobressalto exagerada também é comum nas pessoas com TEPT, isto é, as vítimas facilmente se assustam com qualquer estímulo (Câmara Filho & Sougey, 2001).
Embora os critérios para adultos sejam também utilizados para o diagnóstico infantil, algumas modificações específicas à sintomatologia do TEPT em crianças devem ser observadas (Pynoos, 1992). Em relação ao critério de reexperiência intrusiva, crianças podem apresentar reencenação do trauma, através de brincadeiras e jogos repetitivos em que aspectos do trauma aparecem associados à agitação motora e à presença de pesadelos, com ou sem conteúdo relacionado ao trauma, sonhos traumáticos recorrentes, comportamento de reconstituição e angústia nas lembranças. A evitação de pensamentos, sentimentos, locais e situações, por parte das crianças pode ser também manifestada através de interesse diminuído por atividades habituais, sentimentos de estar sozinho ou isolado das figuras afetivas, embotamento afetivo, dificuldades de memória, perda de habilidades já adquiridas e retrocesso no desenvolvimento, e, por último, sensação de futuro abreviado. Finalmente, em relação aos sintomas de excitabilidade fisiológica aumentada, crianças podem manifestar transtorno de sono, irritabilidade e raiva, dificuldade de concentração, hipervigilância, resposta exagerada de sobressalto e resposta autônoma a lembranças traumáticas (Pynoos, 1992).
O TEPT é ainda compreendido como um distúrbio da memória, devido às falhas no processamento da informação do evento traumático, que podem estar associadas: (a) ao processamento seletivo do conteúdo do evento traumático; (b) à generalização dos estímulos explícitos e implícitos da memória traumática; (c) a problemas para o esquecimento direto do conteúdo traumático da memória; e (d) a problemas na recuperação das memórias autobiográficas (McNally, 1998). Dentro de um modelo cognitivo do TEPT, proposto por Ehlers e Clark (2000), considera-se a avaliação persistente de perigo e de ameaça como o principal fator do desenvolvimento de TEPT crônico. Como conseqüência, ocorre um distúrbio da memória autobiográfica, que é caracterizado pela pobre elaboração e contextualização dos estímulos presentes no momento do evento traumático, além de forte associação ou generalização das memórias do evento e seletivo processo de percepção de estímulos ameaçadores. A literatura revisada indica a presença de fatores de risco e de proteção para o desenvolvimento de TEPT (Bryant, 2003; Ozer & Weiss, 2004). Como fatores de risco podem ser citadas a avaliação negativa do trauma e de suas seqüelas, interpretação negativa dos sintomas de reexperiência do TEPT, a presença de psicopatologias na infância, estratégias de coping desadaptativas, sobreposição de eventos de vida negativos e a falta de suporte social. Em contrapartida, ajustamento parental, alto nível de escolaridade, ambiente familiar coeso e a presença de suporte social foram considerados fatores de proteção (Bryant, 2003; Ehlers, Mayou & Bryant, 2003). Da mesma forma, a presença de doença mental na família, trauma na infância, eventos estressores após o trauma, bem como baixo nível intelectual, fraco suporte social, severidade do trauma e das respostas psicológicas durante e imediatamente ao trauma, foram descritos como preditores do TEPT (Buckley, Blanchard & Neill, 2000; Ozer & Weiss, 2004).
Especificamente em relação ao TEPT em crianças vítimas de abuso sexual, características como tipo de abuso (com e sem penetração), duração do abuso, idade de início do abuso, vínculo com o abusador, presença de ameaça e coação e o contexto da revelação foram apontadas como preditores do desenvolvimento do transtorno. Além disso, a exposição a múltiplos eventos estressores, o baixo nível de inteligência (QI) e a avaliação subjetiva do abuso e das respostas iniciais da criança precisam ser consideradas, pois poderão se constituir em fatores de risco para o TEPT (De Bellis, 2001; Shore, 2002) Em contrapartida, a presença de vínculo afetivo seguro com familiar/cuidador não abusador, rede de apoio social, medidas de proteção e intervenções imediatas após a revelação do abuso atuam como fatores de proteção (Shore, 2002).
AS RELAÇÕES ENTRE TEPT E PREJUÍZOS COGNITIVOS
Modelos teóricos atuais descrevem o impacto da exposição a maus-tratos na infância (entre eles, o abuso sexual) sobre os sistemas neurobiológicos de respostas ao estresse e, de modo geral, sobre o próprio desenvolvimento cerebral (Bremmer, 1999; Bremner & Vermetten, 2001). Dentro deste campo de pesquisa destacam-se os estudos de Bremner (1999), Glaser (2000) e de De Bellis (2001, 2005), os quais sugerem que o abuso crônico e a negligência têm um efeito devastador sobre os processos de maturação e organização cerebral. Para o estudo desse fato tem sido utilizado um modelo teórico que integra as respostas neurobiológicas e psicológicas do trauma, o qual vem sendo denominado de traumatologia do desenvolvimento (De Bellis, 2005). Neste modelo é considerada a capacidade de neuroplasticidade, que se evidencia através de modificações na organização e no processo de maturação do SNC (Perry, 1997; Post et al., 1998).
A exposição a eventos traumáticos ativa os sistemas neurais de resposta ao estresse (sistema nervoso central, sistema nervoso periférico, sistema neuroendócrino e sistema imunológico), particularmente o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (HHA) (De Bellis, 2001; Glaser, 2000; Yehuda, 2001). Pesquisas suportam evidências de hiperfunção deste eixo relacionada ao TEPT, bem como disfunção dos níveis de cortisol (De Bellis, 2005; Nemeroff, 2004). Se por um lado, em crianças que foram vítimas de maus-tratos e desenvolveram TEPT foram observadas altas concentrações de catecolaminas e cortisol, correlacionadas positivamente com a duração do trauma e a severidade dos sintomas de TEPT (De Bellis et al., 1999a), por outro, baixos níveis de cortisol foram observados em meninas vítimas de abuso sexual (King, Mandansky, King, Fletcher & Brewer, 2001). Embora não exista consenso sobre a direção das alterações do cortisol em indivíduos com TEPT, ainda assim é possível sustentar uma associação entre alterações no eixo HHA, níveis de cortisol e o TEPT (Bremner, 1999; Golier & Yehuda, 1998; Yehuda, 2001). Por essas razões, o TEPT pode ser caracterizado como uma complexa condição biopsicossocial causada por uma perturbação persistente do SNC (Nurcombe, 2000).
Estudos de neuroimagem (MRI e PET) têm apontado alterações no volume do hipocampo, da amígdala, do giro cingulado anterior, do córtex préfrontal em adultos com TEPT sobreviventes de guerra e em vítimas de abuso sexual na infância (Bremner et al., 1997; Bremner et al., 2003; Villarreal et al., 2002; Wignall et al., 2004). Pesquisas neuropsicológicas corroboram tais estudos, uma vez que indicam a presença de prejuízos na memória de curto-prazo, na memória declarativa, na atenção sustentada, na aprendizagem verbal, na construção visual e em funções executivas associadas ao TEPT (Bremner, Vermetten, Afzal, & Vythilingam, 2004; Stein et al., 2002; Vasterling et al., 2002). Da mesma forma, Kristensen (2005) apontou diferença significativa no desempenho da atenção seletiva, nas funções executivas e no processamento emocional em estudantes universitários norte-americanos com altos sintomas de TEPT.
Em relação à população infantil, uma crescente literatura tem consistentemente apontado a presença de alterações estruturais e funcionais associadas ao TEPT, em vítimas de maus-tratos. Um estudo com 44 crianças vítimas de maus-tratos (n= 34 abuso sexual) e com TEPT apontou alterações no volume intracranial e cerebral (7.0% a 8.0% menor), diminuição no corpo caloso total e regiões 4, 5, 6 e 7, aumento do ventrículo lateral esquerdo e direito e maior concentração de fluido cerebroespinhal no córtex préfrontal entre as crianças vítimas (De Bellis et al., 1999b). Outro estudo, com 28 crianças e adolescentes maltratados/TEPT (n= 18 abuso sexual), revelou redução do volume intracranial e cerebral (6.0%) e do córtex pré-frontal nas crianças do grupo maustratos/TETP. O volume da substância branca no córtex pré-frontal, no córtex temporal direito e na área mediossagital total do corpo caloso, bem como nas sub-regiões 2, 4, 5, 6 e 7, apresentava redução, enquanto o volume de fluido crebroespinhal (CSF) no lobo frontal, nos ventrículos direito e esquerdo e ventrículo lateral total estava mais elevado do que no grupo-controle (De Bellis et al., 2002b). Ainda, outro estudo, com 43 crianças e adolescentes que sofreram maus-tratos e apresentavam o diagnóstico de TEPT, revelou alterações no volume do giro cingulado temporal superior (STG), bem como maior assimetria do lado direito no volume STG total e no volume STG posterior (De Bellis et al., 2002a). Foram encontradas assimetria cerebral no lobo frontal e redução do volume cerebral em crianças vítimas de maus-tratos e com TEPT (Carrion et al., 2001); todavia, neste estudo, não se encontrou diferença entre os grupos com e sem TEPT quanto ao volume do hipocampo.
Não obstante, poucos pesquisadores investigaram a presença de déficits neuropsicológicos relacionados ao TEPT, em crianças vítimas de maus-tratos. Entre eles, Beers e De Bellis (2002) desenvolveram um estudo com 14 crianças maltratadas (n = 7 abuso sexual) e com TEPT, as quais obtiveram desempenho pobre em testes neuropsicológicos que avaliaram atenção e raciocínio abstrato/funções executivas. Em outro estudo, 34 crianças maltratadas e com TEPT (n= 21 abuso físico, n= 20 negligência e n= 5 abuso sexual) obtiveram elevados níveis de evitação de “faces com medo”, quando avaliadas através de uma tarefa de atenção visual (Pine et al., 2005). Estes dados são semelhantes àqueles encontrados em outros estudos de crianças e adolescentes com TEPT, os quais indicam a presença de déficits na memória prospectiva e na orientação (Moradi, Doost, Taghavi, Yule & Dalgleish, 1999) e prejuízos na atenção, memória e funções executivas em adolescentes infratoras (Kristensen & Borges, 2004). Os estudos aqui citados são consistentes ao afirmarem que a exposição ao estresse crônico, como é o caso do abuso sexual na infância, resulta num estado persistente de medo e, desta forma, pode causar efeitos negativos ao neurodesenvolvimento. Neste sentido, a exposição crônica ao abuso sexual na infância pode resultar no desenvolvimento do TEPT durante os períodos críticos do processo de maturação e organização cerebral, que, por sua vez,pode influenciar a natureza dos prejuízos cognitivos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo buscou apontar as relações entre a exposição ao abuso sexual na infância, TEPT e prejuízos cognitivos. Os estudos revisados indicam que o TEPT parece estar associado a alterações tanto estruturais quanto funcionais das áreas cerebrais relacionadas ao sistema de resposta ao estresse. Os estudos de neuroimagem em adultos e crianças vítimas de abuso sexual com TEPT revelam a presença de alterações no hipocampo, no giro cingulado, no corpo caloso, na amígdala, no córtex pré-frontal e na simetria hemisférica (Bremner et al., 1997; Carrion et al., 2001; De Bellis et al., 2002b; Koenen et al., 2001), sendo que prejuízos neuropsicológicos podem ainda permanecer na vida adulta (Bremner et al., 2003; Bremner et al., 2004). Particularmente, tais áreas parecem estar envolvidas no processamento da memória traumática e nas respostas de medo (Golier & Yehuda, 1998).
Não obstante, apesar de haver consenso na literatura sobre a presença de déficits cognitivos associados ao TEPT, alguns pontos permanecem pouco claros. Nesse sentido, ainda não está claro como os diferentes estágios do neurodesenvolvimento podem influenciar a natureza dos déficits cognitivos (Bremner & Narayan, 1998), nem se os prejuízos estruturais e funcionais podem ser reversíveis (Bremner, 1999), ou ainda se a presença dos déficits cognitivos se deve ao TEPT crônico e à sobreposição de eventos estressores, e não apenas à exposição ao abuso sexual per se. Da mesma forma, Horner e Hamner (2002) argumentam a necessidade de cautela diante das conclusões sobre a presença de redução do volume do hipocampo, em pacientes com TEPT. Mais do que ser causada pela exposição a um evento traumático, tal alteração pode estar associada à cronicidade dos sintomas de TEPT, a uma condição preexistente que aumenta a vulnerabilidade ao desenvolvimento do transtorno ou apenas ser um resultado não específico. Ao revisarem criticamente os estudos sobre alterações no hipocampo, memória e TEPT, Jelicic e Merckelbach (2004) questionam se as anormalidades freqüentemente encontradas devem ser atribuídas ao estresse traumático ou se a presença de anormalidade predispõe ao desenvolvimento de TEPT. Outro ponto a ser destacado refere-se à presença de co-morbidade psiquiátrica relacionada ao TEPT. Pacientes com TEPT apresentam índices elevados de depressão, ansiedade generalizada, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e abuso de substâncias (Briere & Elliot, 2003; MacMillan et al., 2001). A falta de controle desta variável sobre os resultados coloca em dúvida a generalização dos déficits cognitivos associados ao TEPT. Em relação à depressão e ao TDAH, ambos têm sido relacionados a diferentes prejuízos neuropsicológicos, como, por exemplo, na atenção, memória e funções executivas (Emerson, Mollet & Harrison, 2005; Perugini, Harvey, Lovejoy, Sandstrom & Webb, 2000). Nesta direção, Wythilingam et al. (2002) encontraram redução do volume do hipocampo em mulheres com Depressão Maior com história de abuso físico e sexual na infância.
Algumas limitações metodológicas são apontadas por Danckwerts e Leathem (2003), a saber: (1) a falta de padronização dos instrumentos neuropsicológicos utilizados na avaliação da memória, funções executivas e atenção; (2) o tamanho pequeno das amostras; (3) a falta de grupo-controle; (4) amostras específicas, ou seja, em populações como veteranos de guerra, vítimas de maus-tratos e abuso, as quais podem direcionar os resultados e comprometer a generalização dos resultados; e (5) presença de elevada co-morbidade psiquiátrica no TEPT. Além disso, a falta de estudos prospectivos em pacientes com TEPT impossibilita a generalização dos resultados (Jelicic & Merckelbach, 2004; Horner & Hamner, 2001). A partir dos estudos revisados, pode-se observar uma base teórica consistente sobre a interação dos prejuízos neurobiológicos e neuropsicológicos associados ao abuso sexual infantil e ao TEPT. Ressalta-se, no entanto, a necessidade de novas pesquisas, a fim de apontar as implicações entre os sistemas neurais de resposta ao estresse na infância e os fatores neurodesenvolvimentais envolvidos neste processo. Ressalta-se também que a especialização hemisférica (Burnand, 2002), o desenvolvimento do sistema atencional (Rueda et al., 2004) e de funções executivas (Anderson, 2002) ocorrem na infância e se estendem até à adolescência. Desta forma, pesquisas futuras podem contribuir para uma maior compreensão sobre quais mecanismos neurodesenvolvimentais estão envolvidos. Além disso, novos estudos poderão contribuir para a proposição, em relação às crianças vítimas, de intervenções clínicas iniciais que possam minimizar os efeitos negativos do abuso sexual e do TEPT, assim como a proposição de intervenções sociais que fortaleçam a rede de proteção, a fim de potencializar um processo de adaptação mais saudável, após a exposição a eventos traumáticos.
Fonte: https://www.scielo.br/j/pe/a/vzB7BZxdqrbmKZC7dkdmXhb/?format=pdf&lang=pt
Jeane Lessinger Borges. Instituto de Psicologia/UFRGS